
Tomei em mãos, uns dias atrás, um livro publicado há mais de dez anos, mas que não perdeu nada em termos de atualidade. Trata-se do livro ‘Rompendo o Silêncio’ (Vozes, 2000) da autoria de Ivone Gebara. Eis um livro que me parece apropriado para os tempos que vivemos, pois demonstra sensibilidade pelos pequenos gestos de libertação em meio a um universo de opressão.
A teologia da libertação tem insistido muito, e com razão, nos aspectos negativos e até deprimentes da formação do Brasil e da América Latina. O continente anda curvado sob o peso de tantas injustiças. Os noticiários de cada dia ainda aumentam a impressão de impotência e levam a abandonar a luta pela melhoria do mundo.
Mas existe algo que não pode ficar despercebido e Gebara faz muito oportunamente o contraponto, a partir de sua experiência de vida num bairro periférico de Recife. Ela apresenta a vida como sendo ao mesmo tempo perdição e salvação, pecado e graça, paixão e ressurreição. Não a gloriosa ressurreição do fim dos tempos, mas a mini-ressurreição de cada dia, que dá coragem para viver. Um gesto, um olhar, uma mão estendida, tudo pode ser a salvação em momentos de sofrimento.
A solidariedade do terceiro mundo contrasta vivamente com a ‘nova pobreza’ do primeiro mundo, onde existe menos solidariedade entre as pessoas e onde há quem morre na mais completa solidão. Afinal, mesmo sem ter acesso a uma boa educação formal, o povo destas terras vive a teologia da solidariedade com sabedoria, assimila com naturalidade as contradições na vida, aprende na dura sorte que a vida é contraditória, ou seja, bonita e feia ao mesmo tempo.
A cultura popular, ao mesmo tempo em que manifesta evidente sofrimento, revela não menos evidente alegria, uma combinação entre dor e festa, privação e senso de abundância. Cultiva-se um agudo senso por pequenos sinais de salvação e prazer no meio da favela, da miséria. O que há de mais bonito em movimentos como o dos Sem Terra (MST) é essa experiência de salvação imediata e instantânea: um gesto de solidariedade e estima, ajuda e bondade. O momento presente é momento de salvação.
Essa insistência no gozo do momento não costuma ser feita pelos pregadores cristãos, sejam eles católicos ou evangélicos, pois costuma-se ensinar que o cristão tem de lutar agora para poder gozar depois.
As igrejas dizem: ‘Ainda não é tempo de gozar, é tempo de lutar’. Mas isso não funciona na vida concreta, pois aí a luta muitas vezes é sem perspectiva à vista. A pessoa que luta a vida toda e nunca goza, acaba cansando e finalmente abandona a ‘luta’.
Na sua sabedoria, o povo sabe alternar a luta com o gozo. E Ivone Gebara acrescenta: um dos grandes ‘fenômenos’ da vida nos meios populares está nessa aparente contradição. O povo sofredor é um povo alegre. Como diz o bloco carnavalesco: ‘Nós sofre, mas nós goza’. É isso que atrai as pessoas. A maturidade e sabedoria do povo fazem com que as pessoas não acreditem muito nas mega-libertações, mas se alegrem com as mini-libertações de cada dia. Sinal de uma admirável capacidade em superar o sofrimento por um indestrutível otimismo, uma coragem para viver ‘aqui e agora’, de passar por cima de muita coisa para poder viver. Eis a tática, eis a metodologia. Na medida em que a pessoa melhora, o mundo melhora. Recomendo vivamente o livro de Ivone Gebara ‘Rompendo o silêncio’. Leitura que enriquece!