terça-feira, 9 de agosto de 2011

O gozo de cada dia

Eduardo Hoornaert
Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo
Adital

Tomei em mãos, uns dias atrás, um livro publicado há mais de dez anos, mas que não perdeu nada em termos de atualidade. Trata-se do livro ‘Rompendo o Silêncio’ (Vozes, 2000) da autoria de Ivone Gebara. Eis um livro que me parece apropriado para os tempos que vivemos, pois demonstra sensibilidade pelos pequenos gestos de libertação em meio a um universo de opressão.

A teologia da libertação tem insistido muito, e com razão, nos aspectos negativos e até deprimentes da formação do Brasil e da América Latina. O continente anda curvado sob o peso de tantas injustiças. Os noticiários de cada dia ainda aumentam a impressão de impotência e levam a abandonar a luta pela melhoria do mundo.

Mas existe algo que não pode ficar despercebido e Gebara faz muito oportunamente o contraponto, a partir de sua experiência de vida num bairro periférico de Recife. Ela apresenta a vida como sendo ao mesmo tempo perdição e salvação, pecado e graça, paixão e ressurreição. Não a gloriosa ressurreição do fim dos tempos, mas a mini-ressurreição de cada dia, que dá coragem para viver. Um gesto, um olhar, uma mão estendida, tudo pode ser a salvação em momentos de sofrimento.

A solidariedade do terceiro mundo contrasta vivamente com a ‘nova pobreza’ do primeiro mundo, onde existe menos solidariedade entre as pessoas e onde há quem morre na mais completa solidão. Afinal, mesmo sem ter acesso a uma boa educação formal, o povo destas terras vive a teologia da solidariedade com sabedoria, assimila com naturalidade as contradições na vida, aprende na dura sorte que a vida é contraditória, ou seja, bonita e feia ao mesmo tempo.

A cultura popular, ao mesmo tempo em que manifesta evidente sofrimento, revela não menos evidente alegria, uma combinação entre dor e festa, privação e senso de abundância. Cultiva-se um agudo senso por pequenos sinais de salvação e prazer no meio da favela, da miséria. O que há de mais bonito em movimentos como o dos Sem Terra (MST) é essa experiência de salvação imediata e instantânea: um gesto de solidariedade e estima, ajuda e bondade. O momento presente é momento de salvação.

Essa insistência no gozo do momento não costuma ser feita pelos pregadores cristãos, sejam eles católicos ou evangélicos, pois costuma-se ensinar que o cristão tem de lutar agora para poder gozar depois.

As igrejas dizem: ‘Ainda não é tempo de gozar, é tempo de lutar’. Mas isso não funciona na vida concreta, pois aí a luta muitas vezes é sem perspectiva à vista. A pessoa que luta a vida toda e nunca goza, acaba cansando e finalmente abandona a ‘luta’.

Na sua sabedoria, o povo sabe alternar a luta com o gozo. E Ivone Gebara acrescenta: um dos grandes ‘fenômenos’ da vida nos meios populares está nessa aparente contradição. O povo sofredor é um povo alegre. Como diz o bloco carnavalesco: ‘Nós sofre, mas nós goza’. É isso que atrai as pessoas. A maturidade e sabedoria do povo fazem com que as pessoas não acreditem muito nas mega-libertações, mas se alegrem com as mini-libertações de cada dia. Sinal de uma admirável capacidade em superar o sofrimento por um indestrutível otimismo, uma coragem para viver ‘aqui e agora’, de passar por cima de muita coisa para poder viver. Eis a tática, eis a metodologia. Na medida em que a pessoa melhora, o mundo melhora. Recomendo vivamente o livro de Ivone Gebara ‘Rompendo o silêncio’. Leitura que enriquece!

3 comentários:

  1. Nem sei se pode mas roubei este texto do site da ADITAL. Não tive como não furtá-lo! Booommmmm demais!!! Meu Deus, esses teólogos ficam cada vez mais sábios... Olha, estou quase criando um novo critério para selecionar leituras: só leio escritos de sexagenários em diante... rsrsrs
    Beleza de sabedoria. Aproveitem!

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  2. É verdade... o mundo não vai mudar! Não virá a Revolução! A justiça não correrá como um rio! Os opressores não cairão! A fome, miséria, violência, sofrimento... não desaparecerão!!

    A sensação de vazio, de sem-sentido é preenchida pela mão que me acaricia, pelas palavras de incentivo, por uma música que embala minha alma, pela rede de amigas e amigos que se protegem e se amam, pela solidariedade ao próximo, por levar o mínimo de justiça no meu trabalho... pelas experiências com o Mistério que fortalecem meu espírito!

    E vamos ouvir os velhos sábios, bruxos de palavras, que lêm o presente e o futuro, profetas!

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  3. Netinha! Maravilhoso comentário! Sabia que Ágora lhe inspiraria, além de Eduardo Hoornaert é claro!

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